Tudo O Que Você Sempre Quis Saber Sobre O Amor

18/08/2023
Émilie Dubern/Le Verbe
Émilie Dubern/Le Verbe

O amor de Deus é realmente originalidade do cristianismo?

Sem dúvida, mas ainda precisamos entender o que queremos dizer com «caridade» e «amor a Deus». Em português, a palavra «caridade» às vezes é reduzida a uma forma de generosidade material para com os pobres, como na expressão «obras de caridade».

Mas a palavra «caridade» (agapè) no vocabulário bíblico designa primeiro um amor divino. Em sua primeira carta, São João escreve: "E nós temos reconhecido o amor de Deus por nós, e nele acreditamos. Deus é Amor» (1Jo 4,16).

A novidade, ou originalidade do judaico-cristianismo, está primeiro neste fato de que somos amados por Deus de uma forma que excede nossas expectativas humanas.

Antes de Cristo, os homens podiam imaginar que Deus os amava?

Para os judeus, que se beneficiaram primeiro da Revelação, não há dúvida de que acreditaram neste extraordinário amor de Deus. Mas as religiões pagãs (assim como o Islã, aliás) tendem a conceber as relações entre Deus e os homens principalmente em um regime de justiça. Os homens devem respeito, obediência e adoração a Deus, como criaturas para com o seu Criador.

Mas a ideia de que Deus pode nos amar como um pai, nos adotar e compartilhar conosco sua vida divina é precisamente, como diz São Paulo, «coisas que os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram, nem o coração humano imaginou» (1Cor 2,9). «E como ele explicará no final de sua vida: «Vede que prova de amor nos deu o Pai: sermos chamados filhos de Deus. E nós o somos!» (1Jo 3,1).

Deus nos ama, aqui está uma boa notícia! Como entender com mais precisão o que isso significa?

Sobre este assunto, o filósofo alemão Joseph Pieper, que foi professor do Papa Emérito Bento XVI, é muito interessante. Em seu livro sobre a virtude teologal da caridade, ele lembra a importância de refletir tanto sobre o assunto quanto sobre o objeto do amor. Ou seja, sobre quem ama e sobre quem é amado.

Os teólogos refletem de forma natural sobre o assunto do amor: por que e como Deus nos ama? Mas também é importante nos perguntarmos quem são os objetos desse amor divino. Porque, como diz Pieper: «É como se surgisse, de e pelo próprio amor, uma espécie de nova qualidade da pessoa, essa qualidade que consiste justamente em "ser-no-amor", que, por sua vez, obviamente, determina e transforma fundamentalmente a relação com o mundo daquele que o desfruta.»

«Ser-no-amor» transforma nossa relação com o mundo... Mas como?

Fico a pensar num bebé muito pequeno. Quer seja amado ou não, isso não muda a sua natureza. Mas é porque esse bebê «é amado» por sua mãe que ele pode sobreviver, que ela o alimentará, o banhará, o protegerá, etc. Antes mesmo de estar ciente, de «se-saber-amado» por sua mãe, o bebê recebe muitos bens graças ao fato de ser amado por ela.

E quando a consciência de ser amado aumenta, então outros bens também se somam, como a confiança que afasta o medo e desperta o amor por quem nos ama. «De mesma forma, para nós cristãos, que somos filhos de Deus, «ser-no-amor» de Deus muda tudo porque ser amado por Deus nos dá a existência!

Não é preciso existir antes de ser amado? Como amar alguém que não existe?

Antes de sermos filhos, somos criaturas de Deus. Só existimos porque Deus decidiu livremente criar-nos a nós próprios. Portanto, existimos porque Deus nos quer, somos o produto do amor divino. Nesse sentido, podemos dizer que nossa causa é o amor de Deus, que somos feitos ou tecidos do amor de Deus.

O primeiro significado da expressão «Deus nos ama» é, portanto, simplesmente que «Deus nos cria». «Eu sou amado, então eu sou», de acordo com a ordem de causalidade; ou: «Eu sou, então eu sou amado», de acordo com a ordem de descoberta.

O trabalho de qualquer artista só existe porque este de boa vontade, desejou criá-lo. E assim como o artista imaginava dentro de si o que pretendia criar, da mesma forma Deus amava o pensamento de nós dentro dele antes de nos colocar na existência.

Essa qualidade criativa do amor de Deus não pode ser encontrada também em nosso amor humano?

De certa forma sim, embora no sentido estrito, só Deus é criador. Maurice Blondel disse que «o amor é por excelência o que faz ser». Também se poderia dizer que o amor é o que deixa ser.

O fenomenólogo Alexandre Pfänder, por sua vez, qualifica o amor como «tomada de posição a favor da existência do amado» e até mesmo de «manutenção constante e positiva do ente querido na existência». Ele acrescenta que quem ama «concede ao ente amado, por conta própria, o direito à existência». Além disso, a ausência de amor se opõe tanto ao nosso direito de existir que muitas vezes resultará em homicídio; em nossa época em que o aborto se tornou legal e banal.

Mesmo que neguemos ser amados, é o amor que nos faz ser! Mas se aprendermos a reconhecer que Deus nos ama, então cresce em nós confiança e amor por esse Deus de quem sabemos que nos ama. É assim que nasce em nós um amor em resposta ao amor de Deus. A caridade então se torna uma relação de amor recíproco, ou se preferir, em uma linguagem mais clássica, «estado de graça».

São João o expressa nestas palavras: «aquele que permanece no amor permanece em Deus e Deus permanece nele» (1Jo 4,16). Saber-se ser amado por Deus é, portanto, o pivô de toda a vida espiritual.

Saber ser amado por Deus é o que dá sentido, sabor à vida?

Completamente. E isso porque ser amado na verdade dá valor ao nosso próprio ser, e não apenas a algumas de suas qualidades acidentais. Joseph Pieper muitas vezes volta a essa ideia de que o amor autêntico consiste em amar o fato do outro existir: «O que de fato o amante diz e pensa, o olhar colocado sobre a amada, não é: "Que bom que você seja assim (tão inteligente, tão prestimosa, tão competente, tão habilidosa)"; mas: "Que bom que você esteja aqui; que maravilhoso que você exista!"»

Portanto, não apenas o amor nos dá a existência, mas saber que somos amados nos dá o gosto psicológico de existir, se é que posso me expressar dessa forma. O que precisamos, além do simples fato de existir, diz Pieper, é sermos amados, porque ser amado é ouvir a confirmação da verdade.«Que bom que você existe!» A busca pela glória neste mundo não está desvinculada da necessidade de justificar a própria existência, de ser bom para os outros, bom pelo menos aos olhos dos outros.

Dessa forma, saber que existimos graças ao amor de Deus, o Homem encontra sentido e dignidade na sua existência. Que significado e dignidade podemos encontrar em nossa existência se surgimos apenas por acaso, se não somos desejados por ninguém ou para ninguém?

Será que não podemos colocar na raiz de todo pecado a dúvida sobre o amor de Deus por nós? Se Adão e Eva acreditaram na mentira da serpente, não foi porque primeiro duvidaram que Deus lhes dissera a verdade, que Deus queria o que era bom para eles?

Essa parece ser uma boa leitura do Gênesis. Se a fé nos salva, é porque a dúvida nos perdeu. Embora a confiança de que a outra pessoa nos ama seja a base dos relacionamentos amorosos, a desconfiança explica a maioria dos rompimentos de relacionamento.

Podemos dizer que a graça, o fato de estarmos no amor de Deus, nos livra do pecado original, que é como um estado de «desconfiança original» em relação a Deus e à humanidade.

A caridade nos coloca em uma situação de «confiança original», baseada na certeza de sermos amados incondicionalmente. Essa «confiança original» nos devolve a simplicidade própria dos filhos de Deus, que nada mais é do que confiar no amor, abandonando-nos nos braços e no poder daquele que nos ama.

Esse «amor original» traz à mente o famoso trabalho do psicólogo americano René Spitz. Ele comparou crianças nascidas na prisão, mas criadas por suas mães presas, com crianças órfãs criadas por enfermeiras-educadoras altamente qualificadas em berçários americanos perfeitamente equipados.

As crianças nascidas na prisão se saíram muito melhor. Elas adoeceram menos e tiveram uma taxa de mortalidade menor. Elas também eram menos propensas a doenças psicológicas. No entanto, essas enfermeiras-educadoras realizaram sua tarefa não de forma rotineira e com uma objetividade fria.

Os resultados dessa pesquisa não são surpreendentes. Não basta ter o suficiente para comer, não passar frio e ter um teto sobre a cabeça - em resumo, ter suas necessidades básicas atendidas. Nenhuma dessas coisas estava faltando para as crianças que estavam sob os cuidados do governo.

Para usar a metáfora bíblica do livro do Êxodo quando ele fala da «terra onde flui leite e mel», eu diria que o «leite», eles o receberam em abundância, mas o que lhes foi privado foi o «mel».

O «leite» simboliza tudo o que é necessário para satisfazer as necessidades fisiológicas básicas, enquanto o «mel» simboliza a alegria de viver, a felicidade de existir. Este «mel», diria Pieper, nós o recebemos apenas na medida em que temos a oportunidade de ouvir o que essas crianças criadas por uma babá claramente nunca ouviram: «Que bom que você existe!»

Essa imagem do leite e do mel também ecoa a intuição da famosa educadora Maria Montessori, que resumiu tudo o que uma criança precisa:«O segredo é simples e pode ser resumido em duas palavras: leite e amor.»

As crianças precisam de amor mais do que qualquer outra coisa. Mas por que exatamente é tão importante ser amado? Por que nos sentimos justificados em existir quando somos amados?

A resposta está no fato de que somos seres de relacionamentos à imagem da Trindade. Aristóteles disse que o Homem é um animal social. Em outras palavras, somos pontes e não ilhas.

Para ser mãe, para ser marido, para ser filha, para ser irmão, para ser amigo, para ser cidadão, para ser criatura, sempre precisamos do outro. Todo o nosso ser afirma constantemente: «Preciso de você para ser eu mesmo». Pois quem sou eu se não for uma filha, uma esposa, uma mãe, uma amiga, uma cidadã ou até mesmo uma criatura? Nossa dignidade mais elevada, a de filho de Deus conferida a nós pelo batismo, é até mesmo, por definição, um relacionamento, o de filiação.

O homem só é plenamente ele mesmo quando finalmente possui as qualidades de relacionamentos. Um homem carente de relacionamentos é apequenado e, sem nenhum, ele é nada. Pois o primeiro dos relacionamentos é aquele entre o Criador e a criatura, que nos dá nossa existência, como já lembramos.

Na verdade, nós nos definimos muito mais por nossos relacionamentos do que por nosso conhecimento, nossa experiência, nossas atividades profissionais e nossos hobbies. Mesmo a sociedade do «fazer» e do culto ao indivíduo ainda não conseguiram nos distrair totalmente dessa verdade.

O amor nos tira da solidão! O amor cria relacionamentos, como dissemos. Graças ao amor, posso finalmente dizer: «Eu sou para você, e você é para mim». O inferno, a propósito, é frequentemente descrito como solidão eterna.

Diz-se que, nos gulags da Sibéria, dois prisioneiros de guerra perguntaram um ao outro quando e por que somos felizes. A discussão os levou a esta conclusão: estar com aqueles que amamos.

Aristóteles chegou a dizer que a amizade é a coisa mais necessária para a vida, «pois sem amigos ninguém escolheria viver, mesmo que tivesse todos os outros bens». Os relacionamentos amorosos nos fazem felizes, pois permitem que nos tornemos quem somos.

Nesses relacionamentos amorosos, o cristão não deveria procurar amar mais do que ser amado?

É impossível amarmos se não formos amados primeiro. A caridade é uma relação recíproca de amor. «Amai-vos uns aos outros, como eu vos amo» (Jo 15,12).

Mas nessa reciprocidade, o amor de Deus é o principal e a causa do nosso amor. São João nos lembra: «Quanto a nós, amemos, porque ele nos amou primeiro» (1Jo 4,19). Devemos ser movidos antes de nos movermos. «Somos nós, portanto, quando amamos», pergunta Pieper, «menos ativos e atuantes do que movidos, transformados, 'postos em movimento' por algo amável?» Ser amado «nos coloca em movimento», nos leva a amar em contrapartida.

Podemos resumir dizendo que amar a Deus é uma consequência de ser amado por Ele. Não apenas uma consequência psicológica do tipo: eu amo aquele que me ama porque ele me ama e porque eu amo ser amado. Mas ainda mais como uma consequência ontológica, no sentido de que amar a Deus é o primeiro e principal dom de Deus.

Em outras palavras, quanto mais eu amo a Deus, mais posso concluir que Ele me ama, porque é o Seu amor que me faz amá-Lo. Portanto, mesmo que a caridade seja uma virtude e não uma paixão, ela é um dom de Deus, uma virtude infusa, dizem os teólogos, e, nesse sentido, ela é mais recepção do que ação.

Deus nos ama mais como uma mãe do que como um pai?

Isaías diz: «Como a uma pessoa que a sua mãe consola, assim eu vos consolarei» (Is 66,13). Mas não devemos nos esquecer de que as passagens em que as Escrituras falam de Deus como um pai são, sem dúvida, mais numerosas e estão particularmente presentes nas palavras de Jesus. Penso que Deus nos deu um pai e uma mãe para demonstrar dois elementos inseparáveis de seu amor.

Santo Tomás de Aquino ressaltou que a mãe é a pessoa que ama mais intensamente, que ela não aspira tanto ser amada quanto a amar. Nesse sentido, seu amor por seus filhos é incondicional, pois não está sujeito a nenhuma condição prévia. De que outra forma ela amaria o bebê em seu ventre se ela nunca o viu? Portanto, o amor materno não precisa ser «conquistado» em primeiro lugar. Nada poderia nos fazer perdê-lo.

O amor do pai, entretanto, está sujeito a mais condições. Ele quer ser «merecido», diz Pieper, e vemos isso como um elemento fundamental de todo amor. O desejo do amado é que ele não apenas «esteja bem», mas que de fato «esteja bem». Diante do olhar paternal do amante, o amado se sente «reconhecido em um sentido eminente - e ao mesmo tempo instado a ser como o amante o vê», como observa o filósofo Nicolai Hartmann.

O amor de qualquer adulto deve possuir, como em Deus, esses dois elementos, o materno e o paterno: um elemento incondicional e um elemento exigente. Poderíamos dizer: um elemento que nos faz ser e um elemento que nos faz ser mais.

Por que tantas vezes resistimos ao Seu amor?

Porque Seu amor é incondicional e exigente. Sua gratuidade é um verdadeiro inimigo de nosso orgulho, e suas exigências são um adversário de nossa preguiça.

O amor de Deus é gratuito; não o merecemos nem o exigimos; nós o recebemos com gratidão. Como diz o Cântico: «Quisesse alguém dar tudo o que tem para comprar o amor... Seria tratado com desprezo» (Cântico 8,7). O amor de Deus é um dom, e é de fato o "com original" que, por si só, torna todos os demais dons possíveis.

Mas parece haver no Homem uma espécie de aversão a ser agraciado. É totalmente estranho para qualquer pessoa pensar: «Não quero presentes», ou: «Isso é demais para mim». Essa recusa está perigosamente próxima de outra: a de não querer «ser amado». É como se receber um presente significasse que devemos algo em troca. Achamos muito difícil acreditar na gratuidade. Ou talvez vejamos muito bem que dar leva à dívida do amor mútuo de que São Paulo fala nos Romanos.

Será que também recusamos o amor gratuito porque queremos ser reconhecidos pelo que adquirimos por conta própria?

Então, devemos ser amados por nossos pecados! Porque, fora do pecado, tudo o que temos, nós recebemos.

C. S. Lewis vai na mesma direção quando afirma que o amor absolutamente gratuito é certamente o tipo de amor de que precisamos, mas de forma alguma o tipo de amor que cobiçamos: «Desejamos», diz ele, «ser amados por nossa inteligência, beleza, generosidade, justiça, utilidade». Mas o amor criativo de Deus dificilmente encontraria qualquer traço dessas qualidades antes de amarmos. Não há, como possível objeto de seu amor, absolutamente nada. Pois, como disse São Tomás: «O amor de Deus é a causa que infunde e cria a bondade nos seres». Esse amor divino não é, portanto, uma resposta ou reação à bondade, mas uma criação que sempre a precede.

O amor paternal de Deus, o amor que nos leva a nos tornarmos melhores, não pode ser percebido como uma exigência muito grande, como uma pressão esmagadora?

Essa pressão - ou melhor, esse incentivo - para nos tornarmos melhores é tanto um efeito e até mesmo uma exigência do amor, que fugir dessa exigência era considerado um pecado capital pelos antigos. A acédia, a preguiça do coração, de acordo com a definição de Kierkegaard, é o «desespero da fraqueza» que nos faz fugir das exigências do amor. Em outras palavras, é o «desespero que consiste em não ousar ser o que somos».

Mas a raiz desse desespero sempre está no fato de que confiamos em nossas próprias forças para nos tornarmos melhores, quando também é um dom a ser acolhido, e não um cume a ser escalado.

Os místicos dizem que o amor de Deus é «mil vezes mais duro e severo do que sua justiça». Por que isso acontece?

Porque o Homem sabe muito bem que decepcionar a quem ama é um sofrimento terrível e que o verdadeiro amor paterno é o oposto de um descaso altruísta. Que ele está até mesmo disposto a desagradar para o bem da pessoa amada. A carta aos Hebreus nos lembra disso em termos inequívocos: «Se estais privados da educação [«correção» ou «punição» seria uma tradução mais precisa] da qual todos participam, então sois bastardos e não filhos» (Hb 12, 8).

Ser amado por Deus é, portanto, o coração do cristianismo?

Ser amado e amar é um casal indissolúvel para os cristãos. Mas precisamos saber como distingui-los e ordená-los. Precisamos reler com frequência a primeira carta de São João, que desenvolve essa ideia de forma admirável: «Deus é Amor. Nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele quem nos amou » (1Jo 4,9-10).

«Deus é amor», essas palavras devem ser o objeto contínuo de nossa meditação. «Deus nos ama» é Deus que está pronto para dar Sua vida humana para compartilhar Sua vida divina conosco. «Deus me ama» é Deus quem me diz: «Que maravilha que você exista!» «Sou amado por Deus», é Deus que me revela minha bondade e me torna capaz de me amar a mim mesmo.

«Eu te amo» é o que Deus diz a cada um de meus irmãos e irmãs, para que eu também possa dizer a eles: «Que bom que você exista!»

Autor: Simon Lessard

Original em francês: Le Verbe