Por Que A Bíblia Nunca Condena A Escravidão?

18/10/2024

Muitos céticos e até mesmo alguns cristãos lutam com a ideia de que a Bíblia não apenas deixa de condenar a escravidão, mas, na verdade, parece justificar sua existência em alguns lugares. O que devemos fazer com as prescrições detalhadas da Lei Mosaica sobre como os escravos devem ser tratados, por exemplo? E o que dizer da injunção de São Paulo aos escravos de "Servos, obedecei em tudo a vossos senhores terrenos" (Cl 3, 22)? Se a Bíblia é a Palavra inspirada de Deus, como ela pode ser tão cúmplice de algo tão maligno como a escravidão?

Há uma série de pontos que valem a pena ser destacados aqui. Em um nível básico, precisamos nos lembrar de que os tipos de escravidão sancionados por Moisés no Antigo Testamento não são nada parecidos com a escravidão que assolou o Novo Mundo após a descoberta das Américas. Sob esse sistema, os escravos eram rotineiramente sequestrados de suas terras natais e submetidos a condições terríveis. Aos olhos da lei, eles eram meras peças de propriedade, o que significa que seus proprietários podiam fazer com eles o que quisessem.

Em total contraste com esse sistema perverso de crueldade, a permissão do Antigo Testamento para a escravidão é mais parecida com a servidão contratada do que com qualquer outra coisa. Quando as famílias contraíam dívidas graves - uma ocorrência comum no Antigo Oriente Próximo -, os indivíduos envolvidos às vezes eram forçados a vender sua mão de obra por um período fixo de tempo para pagar o que deviam.

Isso pode parecer duro para nós, mas vale a pena observar o quanto os israelitas eram moralmente avançados para sua época. Para começar, Deus estabeleceu várias leis com o objetivo de proteger os pobres e tentar evitar que eles caíssem na miséria. Os agricultores eram obrigados a não colher os cantos de seus campos, por exemplo, para permitir que os pobres e os estrangeiros ficassem com as sobras das colheitas (ver Lv 23, 22).

Da mesma forma, o antigo Israel possuía um sistema extraordinariamente progressivo para liberar os escravos de suas dívidas: a cada sete anos, os servos hebreus deveriam ser libertados, independentemente de quanto ainda deviam aos seus senhores (ver Ex 21, 2; Dt 15,1). Também existiam outras salvaguardas, como leis contra matar um escravo (ver Ex 21, 2), contra causar danos físicos graves a um escravo (ver Ex 21, 26-27) e contra devolver escravos fugitivos (ver Dt 23,15-16). Da mesma forma, sequestrar uma pessoa com o objetivo de escravizá-la era um crime punível com a morte (ver Êx 21:16).

É certo que os escravos estrangeiros estavam sujeitos a condições um pouco mais severas do que seus colegas hebreus, mas mesmo nesse caso Deus tomou medidas para mitigar os abusos. Como Ele lembra repetidamente ao Seu povo na lei, "O estrangeiro que habita convosco será para vós como um compatriota, e tu o amarás como a ti mesmo" (Lv 19, 34). Em um sentido profundo, os israelitas são instruídos a amar os estrangeiros como seus próprios parentes! Com base nisso, Deus pode instruir o povo a "Só haverá uma lei entre vós tanto para o estrangeiro como para o natural" (Lv 24, 22).

O estudioso do Antigo Testamento, Paul Copan, nos lembra que as leis de escravidão de Israel visavam regulamentar um sistema imperfeito, não idealizá-lo. Esse é um ponto importante. A lógica moral da Bíblia é muitas vezes condescendente com a fraqueza humana, mas nunca se estabelece nela. O Papa Bento XVI captou bem esse ponto em sua Exortação Apostólica Verbum Domini:

[Há nas] páginas da Bíblia que às vezes se apresentam obscuras e difíceis por causa da violência e imoralidade nelas referidas. Em relação a isto, deve-se ter presente antes de mais nada que a revelação bíblica está profundamente radicada na história. Nela se vai progressivamente manifestando o desígnio de Deus, atuando-se lentamente ao longo de etapas sucessivas, não obstante a resistência dos homens. (§42)

O objetivo da lei é sempre convocar os seres humanos caídos a uma ordem mais elevada de amor. Ao longo do caminho, Deus conduz Seu povo por estágios contínuos de desenvolvimento moral, fazendo concessões, quando necessário, à sua "dureza de coração" (Mt 19, 8), mas o tempo todo trabalhando para "castigar com brandura aqueles que caem" (Sb 12, 2).

Em resposta a isso, às vezes os críticos argumentam que até mesmo o Novo Testamento não condena totalmente a escravidão. No entanto, essa objeção é falha, pois há muitas atividades malignas que o Novo Testamento não condena explicitamente. Podemos pensar na prática greco-romana de abandono de recém-nascidos, por exemplo, ou nos jogos de gladiadores. Em vez de oferecer uma crítica passo a passo de cada prática perversa comum ao Império Romano e às culturas vizinhas (o que seria uma lista muito longa!), o que o Novo Testamento oferece, em vez disso, é uma compreensão transformadora da dignidade da pessoa humana e da sociedade.

Com base na ideia de que todos os seres humanos - inclusive os escravos (ver Jó 31,14-15) - compartilham da imago Dei - imagem de Deus - (ver Gênesis 1, 27), o Novo Testamento desafia os proprietários de escravos a tratar aqueles que estão sob sua autoridade "não mais como escravo, mas, bem melhor do que como escravo, como um irmão amado" (Fm 1, 16; ver também Cl 4,1). Nessa nova visão radical, a civilização é remodelada de dentro para fora. Como observou Bento XVI, "apesar de as estruturas externas permanecerem as mesmas, isto transformava a sociedade a partir de dentro" (Spe salvi, §4). Os laços da fraternidade cristã agora transcendem todos os laços sociopolíticos: "Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus" (Gl 3, 28; ver também Cl 3,11).

Aqui está a prova na prática. Os críticos podem dizer o que quiserem, mas a realidade histórica é que foi o cristianismo que conseguiu fazer com que a instituição da escravidão praticamente desaparecesse por mais de um milênio, e foi o cristianismo que aboliu o infanticídio, os jogos de gladiadores, a crucificação e coisas do gênero. Além disso, quando indivíduos e corporações perversos começaram a reintroduzir a escravidão nos séculos XVI e XVII, foi o movimento abolicionista cristão que acabou por derrubá-los.

Devemos nos lembrar, também, que os primeiros cristãos eram rotineiramente ridicularizados por promoverem uma religião composta de mulheres e escravos. A partir disso, podemos inferir que aqueles que viviam à margem do Império Romano viram algo diferente nesse novo movimento e se sentiram compelidos por ele. Aqui estava uma religião que tinha a audácia de declarar que o próprio Deus Todo-Poderoso havia morrido como escravo em um madeiro (veja Fl 2,7). Nesse ato supremo de solidariedade, o valor intrínseco e a dignidade de cada escravo seriam exaltados para sempre.

Autor: Clement Harrold

Original em inglês: St. Paul Center 


Documentos Citados:

  • Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini do Papa Bento XVI

  • Carta Encíclica Spes salvi do Papa Bento XVI


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