O Problema Com Maria

01/10/2020
Uma cristã palestina toca um ícone da Virgem Maria durante uma visita à Igreja da Natividade, o local tido como o do nascimento de Jesus Cristo
Uma cristã palestina toca um ícone da Virgem Maria durante uma visita à Igreja da Natividade, o local tido como o do nascimento de Jesus Cristo

Jordan Peterson(1) tem uma maneira fácil de provar a quase todas as pessoas que são uma pessoa de fé. Não é a fé como alguém normalmente pensa nesta época do ano - que o Filho de Deus nasceu de uma mulher judia virgem em um estábulo, numa parte lá não muito boa de Belém, cerca de 2.000 anos atrás - mas há uma ligação.

"Suponho que você presuma que o futuro é real", disse o Prof. Peterson, que ensina psicologia na Universidade de Toronto e estudou o impacto da crença na sociedade. "O futuro é uma entidade imaterial. É composto inteiramente de possibilidades. Portanto, sua crença nisso é um axioma de fé."

Do outro lado da cidade, o Arcebispo Thomas Collins, que tem sob sua responsabilidade 1,7 milhão de católicos da região, disse que acredita em quarks, as pequenas partículas que são um dos dois componentes mais fundamentais do universo físico. O Arcebispo Collins nunca viu um quark e nem ninguém viu. São, disse ele, como tantas outras coisas que aceitamos como num ato de fé, e que estão além de nossa compreensão humana.

"Neste mundo, há muito mais do que pode ser apreendido pela rede tosca do raciocínio secular e racional", disse o arcebispo Collins. "O instrumento imperfeito da razão humana é profundamente valioso, mas não pode apreender tudo. E o nascimento virginal é certamente algo que não se encaixa nele. Mistérios e milagres são simplesmente coisas que confundem a mente. Mas eles são reais e profundos."

Até mesmo o renomado ateu Sam Harris, o autor do best-seller 'A Morte da Fé' e a 'Carta a Uma Nação Cristã', que se seguiu, disse que a fé é o "ponto de apoio sobre o qual depende grande parte da atividade humana e da natureza humana".

"Você é em grande medida guiado - ou mal orientado - por aquilo em que acredita", disse Harris. "Se você é racista, isso é resultado do que você acredita sobre raça. Se você é um jihadista, isso se baseia no que você acredita sobre o Alcorão e a supremacia do Islã. Portanto, a crença está fazendo a maior parte do trabalho que os humanos fazem. E é um motor de conflito e reconciliação. Assim sendo, realmente importa o que as pessoas acreditam."

De todas as crenças ao longo do tempo, não há nenhuma tão extraordinariamente duradoura quanto a crença no Nascimento Virginal. No entanto, para centenas de milhões de pessoas nos últimos 2.000 anos, é a ideia central sobre a qual tudo o mais se sustenta: Deus entrou na humanidade através do ventre da Virgem Maria para criar um homem que também era Deus. Sem isso, Jesus é apenas um profeta judeu da Palestina ocupada pelos romanos que tinha algumas coisas boas a dizer. Sem isso, não há o acalmar os mares ou alimentar 5.000 pessoas com alguns pães e alguns peixes. E não há ressurreição dos mortos e não há cristianismo.

"Isso é simplesmente o que aconteceu", disse o Arcebispo Collins.

O escritor católico Romano Guardini chamou de o ponto "onde a mente parou em algum impasse intelectual". E esse ponto, escreveu ele, é "esta jornada de Deus desde o eterno para o transitório, esta grande travessia de fronteira para dentro da história ... algo que nenhum intelecto humano pode compreender totalmente".

Então, por que se preocupar em compreender se está além da razão humana? Que bem pode trazer em acreditar neste milagre, quanto mais em qualquer outra crença religiosa? É uma pergunta feita por sociedades seculares que cada vez mais vêem a religião como divisória, supersticiosa e uma história bem elaborada, mas irracional, para crianças.

Para o Prof. Peterson, porém, a crença não é opcional. E independentemente da crença específica, ele afirma que é tão necessário quanto o ar e a água.

Em seu nível mais básico, a crença atua como um conjunto de faróis para nos guiar através de um universo nebuloso que "é muito mais complicado do que nossa inteligência". Portanto, a crença não é erradicável, disse ele, porque nunca haverá um momento em que conheceremos tudo.

"A ignorância é uma condição da existência humana e a crença é um meio necessário para lidar com a ignorância", disse ele. "As suposições que fazemos sobre o mundo regulam diretamente nossas emoções e fornecem esperança e inibem a ansiedade."

Mas em um nível mais profundo, a crença representa padrões de uma realidade mais profunda que vai além do mundo físico. Eles funcionam como fórmulas matemáticas que parecem abstratas, mas na verdade definem uma realidade física subjacente.

"Nosso senso religioso é baseado na biologia", disse o Prof. Peterson. "Não é uma simples sobreposição cultural. A crença religiosa e o ritual são universais. É tão especificamente humano quanto a linguagem.

"O que se repete em sistemas profundos de crenças são os padrões da vida. É por isso que as crenças não são apagadas da memória", disse ele. "Há algo nelas que contém a essência da vida. Essas histórias não podem ser esquecidas. É por isso que duram milhares de anos."

Ele aponta para a história do nascimento de Cristo como sendo um arquétipo de todos os anseios humanos, cristãos ou não.

"Cristo nasce no período mais escuro do ano. Isso não é um acidente. Existem muitas ideias extremamente complexas por trás disso. Então aqui está uma: o herói redentor surge quando a necessidade é maior. O herói nasce não apenas quando as coisas estão mais sombrias, mas também quando a tirania atinge novos patamares. Existem dezenas de exemplos como esse que fundamentam a maneira como essas histórias são construídas; elas são incrivelmente profundas e as pessoas as revivem o tempo todo."

Claro, uma dessas histórias que perdura é o Nascimento Virginal, uma ideia central para o cristianismo, mas difícil até mesmo para alguns dos especialistas.

Várias pesquisas feitas ao longo dos anos indicam que cerca de um quarto do clero protestante, por exemplo, tem dúvidas sobre o Nascimento Virginal.

Um ex-bispo episcopal de Newark, NJ, John Shelby Spong chegou ao ponto de sugerir que a Mulher Maravilha era um modelo melhor do que Maria e que a história em torno de Maria era uma pura construção de uma Igreja patriarcal que queria manter as mulheres passivas e puras.

Quase uma década atrás, Bill Phipps, o ex-moderador da Igreja Unidade do Canadá, disse sobre o Nascimento Virginal: "Bem, não acredito que seja necessário acreditar no Nascimento Virginal para ser cristão", disse ele a um repórter. "A fé cristã tem a ver com tentar seguir a vontade de Deus, como a vemos expressa em Jesus de Nazaré. Agora, a natureza deste nascimento não tem nada a ver com isso."

Tim Perry, professor associado do Providence College e do Seminário Teológico de Manitoba, disse que muitos de seus colegas protestantes nunca iriam tão longe quanto o Bispo Spong ou o Rev. Phipps. A maioria dos protestantes, especialmente os evangélicos, aceita o Nascimento Virginal porque ele é especificamente mencionado nos Evangelhos de Lucas e Mateus. Mas mesmo entre aqueles que sustentam pontos de vista ortodoxos, ele sente desconforto em relação a Maria, especialmente quando tratados fora da história do Natal.

"A grande maioria dos protestantes, liberais ou evangélicos, simplesmente não disseram nada sobre Maria. Porque falar sobre Maria é ser católico e não somos católicos ", disse o Prof. Perry, cujo livro mais recente se chama Mary For Evangelicals [N.T.: Maria para os evangélico]. "Nós a tiramos da caixa na época do Natal, falamos sobre ela em alguns sermões, a colocamos de volta na caixa no dia seguinte ao Natal e a deixamos de ver por mais um ano. A relutância é uma uma influência da Reforma. Aceitaremos o que a Bíblia diz sobre Maria, mas não queremos falar muito sobre ela."

Ele disse que a Reforma Protestante se afastou do que era visto como uma obsessão católica por Maria. Os católicos acreditam em sua ascensão corporal ao céu e que ela mesma foi concebida de forma imaculada - embora os católicos professem que apenas Cristo é divino. A Reforma rejeitou todas as noções de Maria não encontradas especificamente na Bíblia. De alguma forma, porém, ao longo das gerações, disse o Prof. Perry, muitos protestantes evangélicos colocaram Maria de lado e isso tirou a riqueza da fé cristã.

Ele disse que a tendência é ainda pior entre os cristãos liberais que preferem ver Jesus mais como um professor de verdades espirituais e seu nascimento sendo bastante comum: "Não acho que seja um mal estar para com Maria em particular, acho que é um mal estar para com milagres em geral."

Prof. Peterson disse que a dúvida sobre a religião e sobre os milagres é tão antiga quanto o tempo. "As estruturas de crenças das pessoas estão sujeitas a críticas internas desde que as pessoas começaram a operar acima do nível da tribo de origem. Uma vez que os sistemas de crenças entram em contato uns com os outros, as dúvidas são geradas. Todo o Antigo Testamento é uma sequência de histórias de como micro-sociedades com tradições diferentes lutam por estabelecer domínio."

Claro, esse conflito ainda é evidente hoje. É evidente no Islã radical e em sua batalha principalmente com o Ocidente secular, e também pode ser visto no campo de batalha intelectual entre ateus modernos como Richard Dawkins e Christopher Hitchens, ambos autores de best-sellers que atacam a religião como irracional e perigosa, e aqueles que vêem a religião como essencial para a vida.

Quando as memórias de Madre Teresa foram publicadas postumamente, a revelação de que ela não sentia a presença de Deus por anos fez Hitchens dar um risinho de contentamento. Hitchens disse à revista Time: "Ela não estava mais isenta da compreensão de que a religião é uma invenção humana do que qualquer outra pessoa, e que sua tentativa de cura foi cada vez mais com profissões de fé que só poderiam ter aprofundado o fosso que ela cavou para si mesma."

Porém o Pe. Eric Jensen, sacerdote e escritor jesuíta, que é diretor espiritual da Casa Loyola em Guelph, Ontário, disse que Madre Teresa nunca perdeu sua fé. Acontece que muitos na sociedade, como Hitchens, não entendem o que é a verdadeira fé.

Ele disse que a verdadeira fé é o fim de um processo de amadurecimento que começa quando somos jovens. No início, acreditamos em coisas porque outros nos dizem que algo é assim. Mais tarde, a crença se transforma em fé à medida que temos essas experiências nós mesmos. Mas ele disse que há um próximo estágio chamado dúvida. Exatamente como Tomé na Bíblia, que não acreditava no Cristo ressuscitado porque não O tinha visto. Mas quando o viu, Jesus disse a Tomé: "Bem-aventurados os que não viram e creram".

"O adolescente é aquele que quer viver tudo", disse Pe. Jensen. "O adulto percebe que você não pode vivenciar tudo. Madre Teresa nunca perdeu sua fé, porque ela continuou rezando e tendo direção espiritual. Mas ela teve que viver por pura fé - fé sem muita consolação. Mas a fé em si é consolação."

Por Charlie Lewis, National Post · 23 de dezembro 2007.


Nota:

(1) Jordan Bernt Peterson é psicólogo clínico canadense e professor de psicologia da Universidade de Toronto. Suas principais áreas de estudo são a psicologia anormal, social e pessoal, com particular interesse na crença ideológica e na psicologia da religião. Ele é autor de Mapas do Significado: A Arquitetura da Crença, e de 12 Regras para a Vida: Um antídoto para o caos. Formou-se em ciência política em 1982 e em psicologia em 1984 ambos pela Universidade de Alberta. Em 1991, concluiu doutorado em psicologia clínica da pela Universidade McGill. Ele permaneceu na Universidade McGill, por dois anos antes de se mudar para os Estados Unidos, onde trabalhou como assistente e professor adjunto do departamento de psicologia na Universidade de Harvard, onde estudou a agressão decorrente de abuso de drogas e álcool e a predisposição herdada ao alcoolismo de filhos de alcoólatras. Em 1997, mudou-se para a Universidade de Toronto como professor catedrático. Como acadêmico, Peterson publicou mais de cem artigos científicos, com mais de 10.000 citações e foi eleito pelos alunos da Universidade de Toronto um dos três professores da instituição que "mudaram vidas". Em 2016, Peterson lançou uma série de vídeos em seu canal do YouTube no qual ele criticou proposta de lei de autoria do governo, que tratava de mudança na gramática inglesa tendo em vista os transgêneros, a qual Peterson classificou como compulsória e autoritária. Os vídeos provocaram grande controvérsia e receberam significativa cobertura da mídia.