Invocar A Cruz

14/09/2024
Cristo a caminho do Calvário, de Ticiano, c. 1650 [Museu do Prado, Madri]
Cristo a caminho do Calvário, de Ticiano, c. 1650 [Museu do Prado, Madri]

Em sua autobiografia, Winston Churchill relata um episódio de seus primeiros anos de escola, quando teve que declinar o substantivo latino mensa {mesa]. Quando Churchill, intrigado, perguntou por que o caso vocativo é traduzido como "ó mesa", o mestre da escola respondeu com naturalidade que era assim que se dirigia a uma mesa. Depois de objetar que não falava com mesas, Churchill recebeu uma reprimenda por impertinência - e uma aversão aos clássicos.

Se, no entanto, ele já tivesse rezado o Ofício Divino para a Festa do Triunfo da C(a celebração de hoje), Churchill poderia ter tido um flashback de seus dias de escola ao encontrar essa antífona:

O crux beata, quae sola fuisti digna portare Regem caelorum, et Dominum, Alleluia. "Só tu, ó Cruz, foste digna de sustentar o Senhor, o Rei dos céus. Aleluia".

Embora possa parecer estranho dirigir-se diretamente à Cruz, como se ela fosse um ser vivo e sensível, poderíamos desculpar isso como um tipo de licença poética.

A Igreja, entretanto, não nos dá essa saída fácil. A antífona acima é apenas o primeiro de muitos exemplos que falam sobre a Cruz, com uma linguagem cada vez mais elevada:

"Ó Cruz gloriosa! De teus braços pendeuo tesouro precioso e a redenção dos cativos. Por ti foi o mundo remido no sangue de seu Redentor."

"Salve, ó Cruz, consagrada pelo corpo de Cristo, por seus membros ornada, quais pedras preciosas."

À medida que as Horas do dia da festa continuam, a linguagem se torna cada vez mais marcante. As antífonas continuam não apenas a se dirigir à cruz, mas também a falar dela com uma linguagem reservada somente a Deus. Mais de uma antífona contém a frase: "Adoramos, Senhor, a vossa cruz". Isso é mais do que a reverência e a veneração que prestamos às relíquias, às imagens sagradas e até mesmo à Mãe de Deus. Essa é a linguagem da latria, do culto e da adoração que somente Deus recebe.

Adorar não a Deus, mas a um objeto da Criação, mesmo o objeto mais sagrado, deveria ser uma blasfêmia. Mas a liturgia da Igreja, duplicando e triplicando esse uso chocante, força nossa atenção e nos convida a olhar mais profundamente.

Por que esse estranho fenômeno linguístico-litúrgico, essa invocação de adoração a um objeto histórico? Quando faço essa pergunta a colegas teólogos, a resposta que ouço com frequência é que a cruz ocupa um lugar tão elevado porque foi manchada com o sangue de Cristo no ato da redenção.

Embora seja verdade, essa explicação só vai até certo ponto. Em primeiro lugar, muitas outras relíquias preciosas da Paixão - podemos pensar na Coroa de Espinhos cuidadosamente preservada em Notre-Dame de Paris ou no sagrado Sudário de Turim - estão manchadas com o sangue de Cristo e, no entanto, não recebem nem a atenção litúrgica nem nada que se aproxime da linguagem latria da Cruz.

Além disso, as antífonas deixam bem claro que não estamos invocando ou adorando o sangue de Cristo na Cruz, mas a própria Cruz. Portanto, fica a pergunta: Por que esse privilégio único e até mesmo chocante?

Eu me atreveria a propor que a Cruz ocupa um lugar no drama da redenção qualitativamente superior ao de qualquer outro instrumento da Paixão, porque Cristo se identificou misticamente com ela, fundiu-se com ela, de uma forma que a eleva além de um mero objeto, por mais sagrado que seja.

Não estamos falando ou adorando apenas as relíquias da Verdadeira Cruz que sustentou o corpo do Senhor no Calvário há 2.000 anos. Estamos adorando a Cruz como um avatar metafísico, por assim dizer, do próprio Jesus. É por isso que, seguindo o princípio da lex orandi, lex credendi (a lei da oração é a lei da crença, i.e., como se reza é como se crê), fazemos genuflexão diante da cruz na Sexta-feira Santa.

Não estamos fazendo genuflexão diante da Cruz Verdadeira (exceto em raras circunstâncias), mas diante da Cruz como a representação mística do Salvador. É uma identificação que o próprio Cristo previu: "E quando eu for levantado da terra, atrairei todos os homens a mim". (João 12, 32)

Cristo declara Sua elevação, Sua exaltação, na Cruz como o pré-requisito para Sua obra de salvação universal. Essa identificação se estende a todo aspirante a discípulo: "Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me". (Mateus 16, 24)

A Cruz, portanto, incorpora a essência da mensagem cristã: um esvaziamento, uma entrega, morrer para si mesmo e para o velho homem do pecado a fim de viver agora para Jesus Cristo, o modelo e as primícias dessa morte e ressurreição. Isso confere à Cruz seu lugar privilegiado.

Jesus usou a coroa na cabeça, suportou os flagelos nas costas, recebeu os pregos nas mãos e nos pés. Mas Ele é a Cruz, Seu corpo cruciforme dando expressão física a essa identificação espiritual, abraçando a cruz a ponto de torná-la uma com Ele mesmo.

Essa assimilação, concluída quando Ele deu seu último suspiro, permitiu que o centurião proclamasse a identidade divina de Jesus: "Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus!" (Mateus 27, 54). As marcas dos pregos que O prenderam à Cruz permanecem em Seu corpo glorificado, os troféus preciosos de Sua vitória e a "prova de vida" pela qual os Apóstolos O reconheceram.

A linguagem dessa festa nos convida a refletir mais profundamente sobre esse mistério e a ver a Cruz como literalmente o ponto crucial da fé cristã e da vida espiritual. É somente na medida em que nós mesmos nos identificamos e abraçamos a Cruz de Cristo, tomando-a, carregando-a e fazendo-a nossa, que podemos esperar participar de seu triunfo.

Autor: Pe. Brian A. Graebe

Original em inglês: The Catholic Thing