A Voz De Um Profeta: Solzhenitsyn Sobre A Crise Na Ucrânia

24/02/2022

Alexander Solzhenitsyn era muitas coisas. Um destemido defensor da liberdade em uma época de totalitarismo. Um destemido crítico do comunismo. Um crítico destemido do Ocidente hedonista moderno. Um grande historiador. Um grande romancista. Um ganhador do Prêmio Nobel. Um profeta.

Em relação à última delas, Solzhenitsyn profetizou, no auge do poder da União Soviética, que sobreviveria à URSS e retornaria à sua Rússia natal após o fim da União Soviética. Como é o destino dos profetas, ele não foi levado a sério. Todos os "especialistas" assumiram que o Império Soviético estava aqui para ficar e faria parte do cenário geopolítico global no futuro próximo. Como a história atestou, o profeta estava certo e os especialistas errados.

Nitidamente vale a pena levar a sério Solzhenitsyn. Em nenhum lugar isso é mais evidente do que em sua notável presciência sobre a atual crise na Ucrânia.

Já em 1968, enquanto elaborava o que mais tarde seria publicado como "O Arquipélago Gulag", ele escreveu sobre seus medos de um futuro conflito entre a Rússia e a Ucrânia: "Me dói escrever sobre isso. Os meus lados ucraniano e russo unem-se no meu sangue, no meu coração e no meu pensamento. No entanto, uma vasta experiência de interação amigável com os ucranianos nos campos de prisioneiros me revelou toda a sua dor. Nossa geração não escapará do pagamento pelos erros dos nossos antepassados."

Prevendo a ascensão do nacionalismo e suas reivindicações territoriais, Solzhenitsyn lamentou que fosse muito mais fácil "bater o pé e gritar Isto é meu!" do que buscar a reconciliação e a coexistência:

Por mais surpreendente que seja, a previsão do ensino marxista de que o nacionalismo está desaparecendo não se tornou realidade. Pelo contrário, em uma era de pesquisa nuclear e cibernética, por algum motivo ela floresceu. E está chegando a hora, gostemos ou não, de pagarmos nós mesmos todas as notas promissórias de autodeterminação e independência; sem esperarmos ser queimados na fogueira, afogados em um rio ou decapitados. Devemos provar se somos uma grande nação não pela vastidão de nosso território ou pelo número de povos sob nossos cuidados, mas pela grandeza de nossos feitos.

A Rússia deveria se contentar em "arar o que nos restará depois que as terras que não quiserem ficar conosco se separarem". No caso da Ucrânia, Solzhenitsyn previu que "as coisas vão ficar extremamente dolorosas". Era necessário, no entanto, que os russos "compreendessem o grau de tensão" que os ucranianos sentem.

Com sua costumeira compreensão da história, ele lamentou que tenha sido impossível ao longo dos séculos resolver as diferenças entre o povo russo e o povo ucraniano, tornando necessário que os russos "demonstrassem bom senso": "Devemos deixar a tomada de decisão com eles: federalistas ou separatistas, o que ganhar. Não ceder seria loucura e crueldade. Quanto mais tolerantes, pacientes e coerentes formos agora, mais esperança haverá de restaurar a unidade no futuro".

A maior dificuldade surgiu da própria mistura étnica na Ucrânia em que, em diferentes regiões do país, havia diferentes proporções de quem se considera ucraniano, de quem se considera russo e de quem não se considera nenhum dos dois. "Talvez seja necessário fazer um referendo em cada região e depois garantir um tratamento preferencial e delicado para com aqueles que querem sair." Para que isso acontecesse, a Ucrânia precisaria mostrar a mesma contenção e bom senso em relação às regiões em que os russos predominavam, como a Rússia precisava mostrar à Ucrânia como um todo.

Isso foi especialmente necessário devido à natureza arbitrária da área designada como pertencente à Ucrânia: "Nem toda a Ucrânia em suas atuais fronteiras soviéticas formais é de fato a Ucrânia. Algumas regiões ... claramente se inclinam mais para a Rússia. Quanto à Crimeia, a decisão de Khrushchev de entregá-la à Ucrânia foi totalmente arbitrária." A maneira como os ucranianos étnicos trataram os russos étnicos dentro dessas fronteiras amplamente arbitrárias "serviria como um teste": "enquanto exigem justiça para si mesmos, quão justos os ucranianos serão para com os russos dos Cárpatos?"

Vários anos depois, em abril de 1981, Solzhenitsyn escreveu uma carta à conferência de Toronto sobre as relações russo-ucranianas na qual escreveu que "o problema russo-ucraniano é uma das principais questões atuais e, certamente, de importância crucial para nossos povos". O problema foi, no entanto, exacerbado pela "paixão incandescente e as temperaturas escaldantes resultantes" que eram "perniciosas": "Tenho afirmado repetidamente e estou reiterando aqui e agora que ninguém pode ser retido pela força, nenhum dos antagonistas deve recorrer à coerção para o outro lado ou para o seu próprio lado, o povo em geral ou qualquer pequena minoria que abrace, pois cada minoria contém, por sua vez, sua própria minoria".

Seguindo os princípios de subsidiariedade que sempre animaram seu pensamento político, Solzhenitsyn insistiu nos direitos das localidades para determinar seus próprios destinos, livres da força coercitiva do governo central estrangeiro e alienante, seja esse governo em Moscou ou Kiev: "Em todos os casos a opinião local deve ser identificada e implementada. Portanto, todas as questões podem ser verdadeiramente resolvidas somente pela população local...". Enquanto isso, a "ferorosa intolerância" que animava os extremistas de ambos os lados da divisão étnica seria "fatal para ambas as nações e benéfica apenas para seus inimigos".

Em 1990, em seu livro seminal e inovador, Rebuilding Russia, Solzhenitsyn profetizou o perigo inerente à composição étnica da Ucrânia:

Separar a Ucrânia hoje significa passar por cima de milhões de famílias e pessoas: basta considerar como a população é mista; há regiões inteiras com população predominantemente russa; quantas pessoas têm dificuldade em escolher a qual das duas nacionalidades pertencem; quantas pessoas são de origem mista; quantos casamentos mistos existem (aliás, ninguém até agora pensou neles como mistos).

Embora Solzhenitsyn temesse as consequências de uma Ucrânia independente, ele respeitava o direito do povo ucraniano de se separar, um direito que eles exerceram devidamente quando a antiga União Soviética se desfez. Reiterando seus princípios subsidiaristas, ele insistiu mais uma vez que "somente a população local... pode decidir o destino de sua localidade, de sua região, enquanto cada minoria étnica recém-formada naquela localidade deve ser tratada com a mesma não-violência".

Hoje, quase quatorze anos após sua morte, a posição de Solzhenitsyn ainda é a única solução sã e segura para a crise ucraniana. As regiões do leste da Ucrânia que desejam se separar do oeste do país, dominado pela Ucrânia, devem ser autorizadas a fazê-lo. Já existem de fato duas nações. Faz sentido, portanto, que essa realidade de fato seja honrada com statusjurídico. Qualquer outra solução sugerida não é apenas injusta, mas levará a uma injustiça ainda maior na forma de guerra, terrorismo e ódio. Nisto, como em muitas outras coisas, a voz do profeta deve ser ouvida.

Autor: Joseph Pearce 

Original em inglês: Crisis Magazine